quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

A teoria dos mini-mundos (por mim...)

Um mini-mundo não só pode como deve dividir-se em várias vertentes, com vista à sua compreensão, ainda que deva, quando compreendidas as suas constituintes, ser visto como um todo. Quando nos apercebemos de um mini-mundo, devemos distinguir as suas componentes físicas, tanto as inanimadas como as animais, vegetais e humanas, e as suas componentes espirituais.
Um mini-mundo é, portanto, necessariamente composto por pessoas que lhe imprimem um determinado valor, uma determinada ideia ou crença, seja ela qual for, e pelo espaço físico envolvente. As componentes espirituais (ideias, crenças, relações inter e intra mini-mundos) são decorrentes das pessoas e do espaço físico que, a dada altura, compõem determinado mini-mundo.
O mini-mundo tem, assim, como principal característica, a volatilidade. Um mini-mundo não existe senão aquando da presença do indivíduo num determinado espaço físico e, ainda que dois ou mais indivíduos em simultâneo se encontrem num mesmo espaço físico, não significa que o mini-mundo se apresente da mesma forma para todos eles.

Um mini-mundo é, então, a impressão que cada indivíduo cria acerca do espaço onde se move, que pode ou não ser partilhada pelos que o rodeiam.

Em resposta a A Teoria dos Mini-Mundos por mim: http://bernaskubrick.blogspot.com/2008/01/teoria-dos-mini-mundos-por-bernardo.html

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Criar o Futuro (I, II, III)

Da janela do quarto vejo Amadeus a pass[e]ar. O seu trajecto habitual não demora mais que 100 metros (e sim, o que mede a distância tem necessariamente uma correspondência temporal): casa-trabalho, trabalho-casa. Sai do 15 e, até entrar no 28 da mesma rua, não despega os olhos do chão, como se algum dos manequins daquela pequena boutique pudessem revolucionar a sua vida.
Lola observa-o dia após dia e não o vê mudar de direcção; deseja que um dia, como que por acidente, se cruzem na mesma rua os todas as manhãs e todos os finais de tarde o vê passar, cabisbaixo.
Após olhar durante mais um pouco, Lola segue a cliente para dentro da loja, ajuda-a a escolher o vestido mais indicado ao seu delicado perfil e conclui a primeira parte da sua tarefa como assistente de moda. Apercebendo-se da entrada subreptícia de um vulto, pela porta, Lola volta costas à sua cliente, fixando Amadeus nos olhos.
- Bom dia, diz, a custo.
- Bom dia. Gostaria de ver as blusas, para senhora.
- Para alguém em especial?
- Sim. Para a minha mulher.
Dito isto, Lola, pede-lhe, entredentes e já sem força nas pernas:
- Aguarde um momento, por favor. Estou a acabar de atender uma cliente.

***

Enquanto Adelaide prova o vestido que Lola escolheu para si, João brinca, impaciente, com a sua pequena bola de borracha. Desastrado, chuta-a com força através da porta da rua; Zazá corre atrás da bola, voltando para trás de imediato, ao avistar um cão enorme a poucos metros de si. João sai calmamente a porta, acaricia o pêlo negro do cão e retira-lhe a bola de entre os dentes.
- Como se chama?, pergunta.
- Tomás.
- O cão...
- Ah. Polis.
João dirige-se ao interior da loja mas colide com a sua mãe à entrada da mesma.
- Tomás?!
- Adelaide... por aqui?
As semelhanças entre os traços faciais de João e Tomás apresentavam semelhanças evidentes. O mesmo cabelo escuro e escorrido sobre a testa, as sobrancelhas finas, direitas e pontiagudas, os mesmos olhos negros em forma de amêndoa, o nariz delicado e os lábios bem-definidos, presentes na mesma cara bem-delineada. A pele de Tomás era, contudo, ligeiramente mais escura.
Adelaide agarra a mão do filho e despede-se de Tomás de forma tosca, evitando olhá-lo nos olhos. Ainda que não compreendendo a atitude daquela que fora em tempos uma grande amiga sua, Tomás encolhe os ombros e segue o seu caminho. Tem cerca de trinta minutos para atravessar a cidade.

***

Polis, o cão de Tomás, fitava, há alguns segundos, um cão do sexo feminino que urina à esquina do prédio. O seu rosnar feroz nenhuma reacção provoca na cadela que parecia encontrar-se num estado de apatia completa, como se o mundo tivesse perdido os seus contornos. Tomás puxa-lhe a trela, comprimindo-lhe a garganta com a coleira. O suspiro de Polis atrai, finalmente, a sua presa; no entanto, esta, passa-lhe à frente sem sequer levantar o olhar. Tomás puxa o seu fiel companheiro para a esquerda, mas este segue para direita; segue-a.
- Polis! Aqui!
De nada adianta o esforço do dono. O cão saíra do seu alcance, tendo iniciado a sua perseguição sexual. Os transeuntes afastam-se bruscamente, desviando-se dos animais e do dono de um deles, que os persegue ferozmente. Uns caem, outros barafustam, outros observam a cena, estupefactos.
A viúva Mendes passeava, àquela hora, alegremente, o seu gatinho albino. Consta que ia à mercearia, em busca de cerejas para fazer aquele bolo de que só ela conhecia a receita.
Ao dobrar a esquina, passa por ela, apressada, uma cadela de pelo claro. Seguidamente, após dobrar a esquina, a medo, contra a Sra. Vitória embate Polis, fazendo-a cair. Diz-se que teve morte imediata.
Polis e Tomás, cão e dono, ficaram prostrados na calçada enquanto viam, impotentes, Vitória Mendes caída e inerte.

(Partes I, II e III, originalmente publicadas em O Melhor Amigo)