quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Declaração de amor (V)

E quando voltei a olhar, tinhas já dobrado a esquina.

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Domingo; o dia perfeito para passear em Lisboa. É de manhã e o sol ainda não está alto, a temperatura amena e o miúdo não tem frio. Acordou cedo e quis sair com o pai à rua. Preferiu abdicar dos desenhos animados para passear um pouco. Agarrei-lhe a mão e segui o cheiro até à pastelaria mais próxima. Ainda não tinhamos tomado o pequeno almoço.

Como se não bastasse, tinha de ser esquisito como o pai. Prefere os pães caseiros integrais mal cozidos. - Duas fatias finas de pão sobrepostas, intercaladas com um pouco de queijo, fiambre, alface e ovo cozido cortado às rodelas, maionese e oregãos; - E um néctar de manga fresco, sem gelo, pediu com desenvoltura. - Para mim também, por favor. Que pequeno almoço, pensei.
E, de relance, pareceu-me ver-te novamente. Saí lentamente da pastelaria. Atravessavas a estrada; dirigias-te para a loja de doces. Entraste; esperei que saísses.

Fiquei espantado ao ver-te com uma mulher. Creio que a tua expressão indicava o teu espanto não só por me ver mas também por saberes que te tinha visto com ela. Se nos tivessemos falado estou certo de que a tua resposta ao meu "Não mudaste nada..." seria algo como "Estás um bocadito mais gordo..."; mas bastou-nos o olhar. Não havia nada mais para dizer; não havia nada mais a fazer.
Tenho a certeza de estares tão feliz quanto eu. Percebi no teu olhar e no teu sorriso que atingiras os teus objectivos da melhor forma; eu também atingi os meus. Lamento que, durante todos estes anos, tenha desejado tanto a tua presença; espero que, durante todos estes anos, não tenhas também desejado a minha.
Não escondo que te amei, apenas sinto que foi melhor assim. Não melhor para mim, não melhor para ti; foi melhor para ambos. Não nos teríamos suportado e, agora, seríamos dois completos desconhecidos. Dois estranhos que evitam olhar um para o outro quando se cruzam na rua, embora sofram com essa mútua atitude. E tu sabes que prefiro sofrer com aquilo que fiz do que com aquilo que não ousei fazer.
- Pai, quem é aquela senhora?
Não pude deixar de me rir. Ah, magano, pensei eu, sais ao pai!


FIM


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sábado, 8 de agosto de 2009

Declaração de amor (II)


Conseguiste que te odiasse de forma irascível. Não acredito que o quisesses, mas é já tarde demais para voltar atrás. E pensar que, a meu ver, completavas o meu dia.
Olhando para trás consigo perceber que, em certas alturas, tentaste destruir tudo o que de bom pudesse rodear-me. Olhando para trás consigo perceber que, em certas alturas, não me amaste; e como se não bastasse conseguiste deixá-lo bem claro. Só que, a meu ver, eras dEus; o meu ídolo, a minha diva.

Sim, ceguei e tenho plena consciência disso. Amei-te demasiado, sim. Mas, analisando a situação - como tanto eu gosto de fazer -, chego à conclusão que fiz tudo aquilo que estava ao meu alcance para te manter por perto. Fiz precisamente o que devia ter feito. Entreguei-me a ti e esperei que te entregasses a mim, sem nunca te exigir o teu amor. Exigi-te que partilhasses o meu espaço sem tentar invadir o teu, exigi que me conhecesses e que me desses a conhecer um pouco mais de ti, exigi a tua presença de espírito numa relação que considerei condenada a priori, mas nunca te pedi que me amasses; só queria que estivesses lá. E, assim, mantiveste-te a meu lado. Pelo menos o teu corpo tocava no meu, iludindo-me um pouco, deixando que tomasse a tua mente pelo teu toque.
Mas foram mais as vezes em que aproveitaste para me humilhar levemente perante todos os presentes do que aquelas em que me senti incapaz de te apoiar.
Foram mais as vezes em que fizeste notar o teu cansaço ou indisponibilidade para passar um pouco mais de tempo comigo do que aquelas em que recusei acompanhar-te para onde quer que fosses.
Foram mais as vezes em que falaste bem de mim aos outros do que aquelas em que admitiste sentir-me a falta.
Foram mais as vezes em que vacilaste do que aquelas em que te dispuseste a amar-me. E só não foram mais as vezes em que te decidiste a abandonar-me porque essa foi das poucas decisões que tomaste sem vacilar.

Resta-me recordar o bom que foi, resta-me sentir o teu cheiro nos lençóis, resta-me ouvir a tua voz a cada esquina, resta-me imaginar-te nos meus braços, resta-me sonhar contigo. E uma vez que o ódio é a mais pura forma de amor, prefiro que me odeies a ser-te indiferente. E eu espero; espero que um dia o ódio seja esquecido e que, então, eu seja capaz de não te amar.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Declaração de amor (III)


Amsterdão, 26/09/2009

É assim que das cinzas de uma velha paixão, do único amor que alguma vez conheci, consegue nascer uma nova paixão, um novo começo para o desespero. Se me perguntasses porque passei tanto tempo sem olhar para ti, eu não te saberia responder. Não há motivo algum para que eu possa ter ignorado ou reprimido aquilo que via em ti - ou, pelo menos, não durante tanto tempo.
Acompanhaste-me, mimaste-me com os teus beijos e com os teus abraços, preocupaste-te, falaste comigo sobre mim, sobre ti, mas nunca sobre nós. Nunca pensei que fossem bons ingredientes para um romance duradouro, tal como se avizinha. Sinto-me feliz por poder estar a teu lado. És uma pessoa simpática, inteligente e perspicaz, atenciosa e preocupada; és quem me completa.
Espanta-me saber que uma pessoa tão simples pode apreciar uma pessoa como eu, que me considero tão sofisticado, sempre à procura da última inovação científico-tecnológica. Espanta-me saber que uma pessoa tão ingénua como tu possa apreciar em mim a minha tentativa de compreender tudo e todos, de explicar o mundo, reduzindo-o à sua mecânica insignificância. Espanta-me olhar para a tua beleza e saber que te prendeste a mim. Tens uma cara expressiva e apaixonante, um corpo magnífico e um espírito digno de um dEus. Podias ter qualquer homem - ou qualquer mulher! - e escolheste-me a mim. Ainda hoje me pergunto porquê.

Avizinha-se o princípio de uma história com pernas para andar. Finalmente, encontro alguém que apenas precisa de estar a meu lado para me fazer feliz. Não preciso que seja mais nem menos. Não me pede que seja mais nem menos. Basta-me a sua presença a meu lado para me fazer sentir bem. Não há uma explosão emocional; não me parece que o meu peito vá rebentar a qualquer momento. A sensação não é opressiva; a sensação não me deixa sem fôlego. Será amor?...

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Declaração de amor (I)


Bem sabes que nunca amei ninguém antes de olhar para ti. Conheci-te, apaixonei-me, manifestei-te a minha vontade de estar a teu lado, conheci-te um pouco melhor e amei-te com todas as minhas forças. Entreguei-me à sofreguidão do teu olhar, à força do teu toque e à irresistibilidade do teu charme. Afundei-me na imensidão do teu mundo, tão vasto e especial, diferente de todos os outros que alguma vez conseguira alcançar.

O som da tua voz ao longe era suficiente. Ainda assim, o teu toque e o teu beijo eram os ingredientes da fórmula secreta que me fazia levitar. Com o tempo, a necessidade desse toque consumiu-me por dentro e tornou-me feliz como nunca me sentira, tornou-me apenas parte do corpo e do espírito que fomos. O teu corpo e o meu foram um só; sem a ti a meu lado, eu não me sentia completo.
Quando as nossas vozes se calavam, ouvíamos música. Ouvimos música nas mais variadas situações e escolhemo-la a dedo para todas elas. Ainda me recordo de uma manhã, que começou com Caribou e Notwist, em que ameaçaste casar-te comigo quando fiz panquecas para o pequeno almoço. Ainda me recordo da noite em que assitimos ao concerto de Mogwai e ao chegar a casa te enfadei com um pouco mais do mesmo, só porque sim. Ainda me recordo das tardes que passámos deitados lado a lado ao som das minhas listas de reprodução esquizofrénicas; e recordo-me daquelas vezes em que demorei tanto a construí-las que te levei a ponderar se estarias no sítio certo à hora certa... e, quiçá, com a pessoa certa.
Recordo-me dos telefonemas que recebi da Holanda e da Bélgica em que confessaste a saudade que sentias da minha companhia. Recordo-me da nossa viagem de três dias. E lembro-me que aquilo de que mais gostaste foi de fazê-la comigo a teu lado. E, sim, lembro-me de ter ficado perplexo com essa tua afirmação.
Lembro-me de todas as vezes que vieste ter comigo de madrugada, só porque sim. Oh, sim!... como me sabia bem ter-te depois de uma noite de trabalho...
Lembro-me do calor que sentia no peito ao ver-te entrar a porta do bar. E lembro todas as vezes em que o meu peito gelou porque me fazias ficar a desejar que não tivesses vindo.

Sempre me perguntei se olhavas para mim e para os outros com esse mesmo olhar de prazer, que revela a tua paixão por aquele que tens em cima de ti; calei-me e guardei o pensamento só para mim, pensando que eu era especial. Eu sentia que era; eu senti que fui. Eu senti que deixei de ser.