terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Criar o Futuro (I, II, III)

Da janela do quarto vejo Amadeus a pass[e]ar. O seu trajecto habitual não demora mais que 100 metros (e sim, o que mede a distância tem necessariamente uma correspondência temporal): casa-trabalho, trabalho-casa. Sai do 15 e, até entrar no 28 da mesma rua, não despega os olhos do chão, como se algum dos manequins daquela pequena boutique pudessem revolucionar a sua vida.
Lola observa-o dia após dia e não o vê mudar de direcção; deseja que um dia, como que por acidente, se cruzem na mesma rua os todas as manhãs e todos os finais de tarde o vê passar, cabisbaixo.
Após olhar durante mais um pouco, Lola segue a cliente para dentro da loja, ajuda-a a escolher o vestido mais indicado ao seu delicado perfil e conclui a primeira parte da sua tarefa como assistente de moda. Apercebendo-se da entrada subreptícia de um vulto, pela porta, Lola volta costas à sua cliente, fixando Amadeus nos olhos.
- Bom dia, diz, a custo.
- Bom dia. Gostaria de ver as blusas, para senhora.
- Para alguém em especial?
- Sim. Para a minha mulher.
Dito isto, Lola, pede-lhe, entredentes e já sem força nas pernas:
- Aguarde um momento, por favor. Estou a acabar de atender uma cliente.

***

Enquanto Adelaide prova o vestido que Lola escolheu para si, João brinca, impaciente, com a sua pequena bola de borracha. Desastrado, chuta-a com força através da porta da rua; Zazá corre atrás da bola, voltando para trás de imediato, ao avistar um cão enorme a poucos metros de si. João sai calmamente a porta, acaricia o pêlo negro do cão e retira-lhe a bola de entre os dentes.
- Como se chama?, pergunta.
- Tomás.
- O cão...
- Ah. Polis.
João dirige-se ao interior da loja mas colide com a sua mãe à entrada da mesma.
- Tomás?!
- Adelaide... por aqui?
As semelhanças entre os traços faciais de João e Tomás apresentavam semelhanças evidentes. O mesmo cabelo escuro e escorrido sobre a testa, as sobrancelhas finas, direitas e pontiagudas, os mesmos olhos negros em forma de amêndoa, o nariz delicado e os lábios bem-definidos, presentes na mesma cara bem-delineada. A pele de Tomás era, contudo, ligeiramente mais escura.
Adelaide agarra a mão do filho e despede-se de Tomás de forma tosca, evitando olhá-lo nos olhos. Ainda que não compreendendo a atitude daquela que fora em tempos uma grande amiga sua, Tomás encolhe os ombros e segue o seu caminho. Tem cerca de trinta minutos para atravessar a cidade.

***

Polis, o cão de Tomás, fitava, há alguns segundos, um cão do sexo feminino que urina à esquina do prédio. O seu rosnar feroz nenhuma reacção provoca na cadela que parecia encontrar-se num estado de apatia completa, como se o mundo tivesse perdido os seus contornos. Tomás puxa-lhe a trela, comprimindo-lhe a garganta com a coleira. O suspiro de Polis atrai, finalmente, a sua presa; no entanto, esta, passa-lhe à frente sem sequer levantar o olhar. Tomás puxa o seu fiel companheiro para a esquerda, mas este segue para direita; segue-a.
- Polis! Aqui!
De nada adianta o esforço do dono. O cão saíra do seu alcance, tendo iniciado a sua perseguição sexual. Os transeuntes afastam-se bruscamente, desviando-se dos animais e do dono de um deles, que os persegue ferozmente. Uns caem, outros barafustam, outros observam a cena, estupefactos.
A viúva Mendes passeava, àquela hora, alegremente, o seu gatinho albino. Consta que ia à mercearia, em busca de cerejas para fazer aquele bolo de que só ela conhecia a receita.
Ao dobrar a esquina, passa por ela, apressada, uma cadela de pelo claro. Seguidamente, após dobrar a esquina, a medo, contra a Sra. Vitória embate Polis, fazendo-a cair. Diz-se que teve morte imediata.
Polis e Tomás, cão e dono, ficaram prostrados na calçada enquanto viam, impotentes, Vitória Mendes caída e inerte.

(Partes I, II e III, originalmente publicadas em O Melhor Amigo)

1 comentário:

C. disse...

gostava de criar sem exibir metáforas com a minha realidade, ou com aquela que me é; com metáforas para introduzir aquelas pessoas, aqueles acontecimentos, aqueles sentimentos. que fosse só um retrato do imaginário. actualmente não consigo. é sempre uma extensão do que sou (acho que tem que ser sempre assim, mas a criação de algo que não é mesmo nosso, dá-me vontade de me levantar e aplaudir.)


[ http://www.youtube.com/watch?v=W6_sZd3viG8 - ando com vontade de ouvi-los. se os tiveres, quando tiveres tempo de me gravar um dvd (acho que te dei mais um...) e se puderes inclui também estas senhoras (que na verdade é só uma no meio de vários senhores, mas eu acho que eles são senhoras também...) se faz favor.]


p.s: 'tou a ficar maluca c este trabalho de métodos...*